O mapa da mina

O mapa da mina
Será que a inteligência artificial pode ter a capacidade de mudar o jogo criativo no mercado de fragrâncias? 


A profissão de perfumista sempre teve um aspecto criativo, abstrato, beirando quase o lúdico. Embora hoje os "narizes" trabalhem muito embasados por pesquisas de mercado de todas as naturezas, ainda existe a percepção de algo muito mais artístico - por mais que não seja exclusivamente o caso hoje. 

Por isso, a criação da Phylira - a plataforma de inteligência artificial da casa de fragrâncias Symrise, baseada na tecnologia de inteligência artificial e machine learning da IBM, o Watson, tem gerado muita curiosidade. Primeiro porque foi feito um grande alarde no Brasil em cima dos primeiros lançamentos desenvolvidos com o auxílio da plataforma, duas fragrâncias para a marca O Boticário, que devem chegar ao mercado em meados de 2019. Mas, obviamente, entender como a chegada da inteligência artificial e do machine learning ao coração da indústria de fragrâncias - a criação e o trabalho de seus perfumistas - vão impactar a forma como novas fragrâncias poderão ser desenvolvidas é o que realmente importa.

Esse processo precisa ser entendido em duas dimensões diferentes e complementares: os aspectos técnicos que envolvem a criação de uma fragrância e as questões mercadológicas, que vão se refletir de forma diferente nos aspectos criativos.

Do ponto de vista técnico, é bastante óbvia a forma como os perfumistas e as casas podem se beneficiar do uso da inteligência artificial. Uma composição perfumística é fruto da combinação de dezenas, centenas de ingredientes naturais e sintéticos diferentes feitos a partir de uma paleta que contempla milhares de opções. Antes de ser criativamente boa, é preciso que a composição cumpra com uma série de requisitos técnicos relacionados à estabilidade e à segurança da fragrância, como alergenicidade e a coloração do líquido. São questões de ordem bastante objetiva, sem muito espaço para interpretação. Nesse sentido, o Phylira - nome da deusa grega do perfume -, consegue usar a sua capacidade de processamento de dados para "prever" eventuais incompatibilidades entre ingredientes na composição. O sistema consegue mapear ingredientes, matérias-primas e combinações de fórmulas. 

A inteligência artificial para o desenvolvimento de fragrâncias desenvolvida com base no Watson inclui algoritmos que aprendem e podem prever complementos de matérias-primas alternativas e substitutos que poderiam ser usados em uma fórmula específica e a dosagem apropriada para uma matéria-prima baseada em padrões de uso, por exemplo.

Para isso, ele pode buscar essa informação em uma gama de fontes gigantesca e, à medida que vai recebendo orientações dos seus treinadores na Symrise, o próprio sistema pode ele mesmo se atualizar e buscar novos estudos e referências que possam melhorar a capacidade da plataforma de prever problemas ou incompatibilidade entre ingredientes, levando em conta elementos como testes já realizados, considerando a estrutura molecular de cada ingrediente, ou mesmo, reports de alergia e intoxicação de consumidores. Isso, sem dúvida, tem condições de poupar muito tempo de trabalho, evitando que o criador siga um caminho que lá na frente pode se mostrar inviável do ponto de vista técnico. (O uso de tecnologias como o Watson justamente para essa finalidade foram abordadas em reportagem de Atualidade Cosmética de julho/agosto de 2017). 

Mas o Phiryla se propõe a ir muito além de prever os aspectos técnicos da fragrância. "O objetivo final é usar a inteligência artificial para desenhar novas fragrâncias dignas de prêmio", diz um paper da IBM assinado por Richard Goodwin, pesquisador e gerente de Pesquisa Aplicada de Data Science e outros pesquisadores da empresa e apresentado durante a 31º Neural Information Processing Systems, conferência realizada na Califórnia, Estados Unidos, em 2017. Os algoritimos podem ajudar a plataforma a entender e buscar prever qual será a resposta humana a uma criação, ou seja, quão agradável e adequada é uma fragrância para diferentes públicos a partir da análise de um conjunto de pesquisas e informações mercadológicas, que foram inseridas (ou encontradas). E, também, se aquela criação é original quando comparada a outras criações já disponíveis no mercado e destinadas àquele público, apresentando a informação de forma gráfica, facilitando a visualização de quão inovador (ou melhor dizendo, quão diferente) é aquela criação apresentada pelo perfumista.

Além de uma boa base de dados inseridas pelos profissionais da Symrise e da orientação de como e onde ele pode se atualizar, é preciso que seja estabelecido um bom briefing para que o sistema possa auxiliar de forma adequada o perfumista. Em resumo, é preciso que o briefing seja suficientemente claro e permita aos perfumistas fazerem as perguntas certas ao Phylira. "Tínhamos um briefing para trabalhar um segmento de mercado, então cruzamos os dados de matérias-primas e ingredientes com dados de mercado sobre aquele target que o cliente determinou. Fazendo esse cruzamento, chegamos a várias opções sobre o que daria certo para aquele consumidor e o que o perfumista pretendia criar", afirmou Luciana Knobel, head de Criação de Perfumaria Fina da Symrise pela América Latina. O perfumista David Appel, do estúdio da Nova York em Symrise e o mais envolvido com a nova tecnologia, avaliou as sugestões da plataforma e, em seguida, fez ajustes mínimos nas criações que serão lançadas por O Boticário, para dar mais ênfase a uma determinada nota e melhorar o lasting da criação na pele. 

O driver de sucesso das grandes casas de fragrâncias e dos players da indústria é justamente a inovação, a capacidade de trazer cheiros e aromas novos para o mercado. Para a Symrise e a IBM serve para fornecer sugestões e alternativas nas quais talvez o perfumista não pensasse em uma situação normal. "São mais de 100 mil fórmulas conhecidas. Cada uma com determinada proporção e com seus atributos próprios. O sistema apenas extrai as informações e apresenta-as", explica Ulisses Mello, diretor do laboratório de pesquisas da IBM Brasil. Ele explica que o próprio briefing já delimita um espaço de atuação mais restrito. "Quando você delimita o espaço desejado, o sistema procura variações que sejam novas. E você pode reduzir esse espaço por notas específicas, ingredientes ou por tipo de gosto do público target", continua Ulisses. O Phylira é capaz de identificar padrões até em assinaturas olfativas. "Muitos até brincam que a inteligência artificial vai substituir o perfumista, mas não é o caso. É só uma forma de apoiar a sua criatividade, dando a eles novos recursos para que possam trabalhar", pontua a executiva da Symrise.

Inovações técnicas como essa, deixam o mercado curioso. Tanto IBM, quanto Symrise receberam perguntas a respeito do funcionamento e dos processos utilizados. "Recebemos alguns questionamentos a respeito do Phylira e serviços parecidos, mas nada que possamos falar no momento. Está tudo em discussão ainda, é cedo para afirmar algo", disse o diretor de pesquisas da IBM Brasil. E, sem dúvida, novas tecnologias acirram a concorrência. "Criou uma curiosidade, no mundo inteiro inclusive. Foi uma grande repercussão o anúncio da parceria e a utilização da ferramenta", finalizou Knobel. 

O objetivo de longo prazo da Symrise é apresentar esta tecnologia aos seus principais perfumistas em todo o mundo e continuar a usar a solução para o design de fragrâncias para produtos de cuidados pessoais e domésticos. A Symrise também planeja introduzir Phylira em sua Escola de Perfumaria para ajudar a treinar a próxima geração de perfumistas, integrando firmemente a inteligência artificial na essência de criação de uma fragrância.

Como se trata de uma sociedade, o Phylira não pode ser comercializado para outras empresas, inclusive outras casas, sem que a Symrise autorize. Isso deve dar à companhia alemã alguma vantagem competitiva para aprender a utilizar melhor a ferramenta e entender qual o potencial dela para otimizar os processos e agregar valor ao negócio.

O processo de machine learning confere ao sistema a capacidade de pensar e fornecer insights ao perfumista, sem interferir na criatividade do mesmo, segundo a própria IBM. É mais do que esperado supor que, nos próximos anos, o uso de plataformas de inteligência artificial e machine learning esteja mais difundida no mercado de fragrâncias, disseminada em diferentes empresas desse mercado ao redor do mundo. Isso pode transformar essas novas tecnologias em ferramentas tão importantes para o mercado como o cromatógrafo. Com a vantagem de que essa plataforma - ao contrário do cromatógrafo, que só entrega uma fórmula - aprende e ensina. Um aprendizado mútuo e contínuo que pode levar a criação olfativa a um novo patamar.

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