Olhando pra frente, sempre

Olhando pra frente, sempre
Um dos mais bem-sucedidos empresários do mercado brasileiro de beleza, Daniel de Jesus compartilha suas experiências e visões com os leitores de Atualidade Cosmética 


“Eu não quero falar muito do passado. Gosto mesmo é de falar do que eu faço e do que ainda vou fazer.” Assim começou o bate-papo com o empresário Daniel de Jesus, fundador da Niely, empresa que ele alçou do zero à liderança do mercado de coloração e à condição de segunda maior empresa brasileira do setor operando no varejo multimarcas. No ano passado, Daniel vendeu a companhia para a L’Oréal, maior empresa de cosméticos do mundo. Hoje, como vice-presidente do comitê estratégico da L’Oréal, o dirigente vem ajudando a gigante francesa a transitar no complexo ambiente do pequeno varejo brasileiro, incluindo aí uma relação mais próxima com distribuidores e atacadistas, e com o varejo de beleza. E a companhia francesa está mais do que certa em ouvir o que o fundador da Niely tem a dizer.
As vendas de centenas de milhões de reais, marcas líderes, uma das melhores infraestruturas de produção e distribuição dentre as companhias brasileiras e presença sólida no varejo, pulverizada em milhares de pontos de venda de todo o Brasil, são os ativos tangíveis que fizeram da Niely a empresa mais cobiçada pelas multinacionais do mercado. Mas é a grande capacidade comercial, exercida com maestria por mais de 30 anos de andanças pelo Brasil para atender aos clientes e estar sempre perto das suas necessidades, que constitui o maior ativo intelectual de Daniel, do qual a L’Oréal pode (e deve) se beneficiar ao longo dos próximos anos.

Homenageado deste ano do Hall da Fama do Prêmio Atualidade Cosmética, Daniel recebeu a reportagem de Atualidade Cosmética na sede da Milano Empreendimentos, empresa criada para gerir seu patrimônio e empreendimentos, na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, para falar, entre diversos pontos, das oportunidades do mercado brasileiro e dos desafios que as empresas locais devem enfrentar para conseguir crescer no setor. Confira nas páginas a seguir, com as palavras do próprio empresário, os principais temas da conversa.

Da rua para o escritório
Se você me perguntar o que eu faço bem, acho que é o trabalho na área comercial. É um talento que está dentro de mim e move o meu jeito de ser, de pensar, de fazer. O fato de ser um homem da área comercial, que passou muito tempo rodando o Brasil todo com a pasta de baixo do braço, me permitiu ter uma visão muito boa do que os clientes estavam buscando e o que as pessoas estavam comprando. E tudo isso que eu via acontecer no campo, esses insights, esse sentimento eu levava para dentro do Marketing. As pessoas muitas vezes confundem; alguém dizia “o Senhor Daniel quer lançar um produto (uma coloração?) vermelho”, mas como se fosse um capricho, um gosto pessoal e nunca foi isso. Queria um produto vermelho porque sabia – por conta das minhas andanças e do contato direto com a rua – que o mercado, que as pessoas queriam comprar aquele determinado produto em vermelho. Não era algo de gosto, ou mesmo instintivo. Tinha uma técnica e um objetivo claro. Às vezes era um objetivo regional, porque o Brasil é um país muito grande, uma terra de oportunidades que é um espetáculo.

A regionalização do Brasil é um negócio fora de série. Há lugares em que se vende muito creme para pentear, em outros que vende muito condicionador, mas não o creme para pentear. Entender essa dinâmica é muito interessante. Acho que as empresas que derem atenção a esse fenômeno podem se dar muito bem. E isso não quer dizer que você precisa ter uma linha só para atender ao Nordeste ou só para a região Sul. Qualquer indústria precisa de certa escala. Mas você pode ter uma linha com alguns itens com mais foco para o Nordeste e outros para o Sul. É importante você ter essa visão de como atender ao básico, que serve a todos, e também atender às peculiaridades de cada região. Tem um pouco de sensibilidade, de percepção nisso, mas ao mesmo tempo é preciso conhecer a região de muito perto, tem de gastar sola de sapato. É isso que faz essa diferença, se não você está roubado.

Tudo se resolve com pedido em cima da mesa
Quem está dentro do escritório – e nunca andou com a pasta debaixo do braço rodando o Brasil para vender – não tem a visão real do que acontece na rua, no mercado, no campo. Muitas vezes as pessoas acham que o vendedor ou o representante, ganha muito, ganha mole e ganha fácil. E não é bem assim. É um trabalho árduo, muito duro. Você tem de saber conquistar o cliente, convencê-lo a comprar, arrumar espaço na prateleira competindo com empresas maiores e mais capitalizadas... Tudo isso é uma virtude, um talento.

As empresas costumam ter problema quando crescem muito. Aí elas correm um risco muito grande de quebrar, porque o negócio começa a ficar distante, longe da visão, e as coisas erradas acontecem e o comando das empresas não consegue mais enxergar. Fica tudo fora de controle. A maioria das empresas que não têm esse acompanhamento de perto, principalmente no campo, não conseguem avançar.

Costumo dizer que tudo se resolve com pedido em cima da mesa. Sem pedido em cima da mesa não adianta você ter fábrica bonita, caminhão, máquina moderna... Acho que tudo se resolve aí. Uma forma de você ter sucesso rápido é dedicar pelo menos 50% do seu tempo e manter o contato forte com a rua, capacitando muito bem as promotoras, as demonstradoras, você tem de ter uma equipe de vendas afiada, ligeira e capacidade de tomar decisões que vão ajudar o ponto de venda com rapidez. Tudo isso ajuda muito. Na minha opinião, é o campo que dirige tudo. Na área Comercial, quem não é do campo está perdido. Mesmo quando a Niely cresceu demais, eu nunca deixei de estar na rua. Aliás, até hoje eu faço isso.

O relacionamento com o varejo
Teve um executivo que trabalhou comigo aqui, o Ginaldo (Martins, experiente executivo do mercado que passou quase 20 anos na gerência de vendas da Wella e, entre 2005 e 2009, na Niely). Foi um colaborador que me ajudou muito. Ele dizia uma coisa muito interessante: “o varejo é um saco sem fundo”. Ele falava todo o dia e isso virou uma pérola interna dentro da Niely. Acho que qualquer empresa tem de dar atenção ao varejo. O varejo é um espetáculo. Toda a vez que o poder de consumo cresce o varejo explode, falta televisão, geladeira, automóvel tudo. Acho que o varejo é a base de toda a companhia que atua nesse segmento.

E o varejo de beleza, especificamente, é um trabalho que está sendo muito bem feito. Você tem uma Lojas Rede, em Belo Horizonte, fazendo um trabalho fantástico; o Ikesaki que finalmente resolveu abrir novas lojas, a Lojas Livia (no interior de São Paulo), o Hélio Kodama, da Sumirê. Acho que o caminho para o varejo é esse. Ser profissional e evoluir para atender muito bem ao consumidor e oferecer um produto a quem muitas vezes não tem acesso. Essas empresas estão crescendo e sabem que têm de dar uma atenção maior para o consumidor. Elas têm de se preparar e marcar seu território. Quem se prepara, se capacita e demarca o seu território está preparado para vencer no varejo. Estar com essa turma (das perfumarias) é uma forma de estar perto das consumidoras.

Falando a mesma língua do povão
A minha filosofia é “Se perco dez clientes ainda tenho 90, meu negócio está pulverizado”. A mesma filosofia eu aplico para o consumidor. Se você for atender à classe AAA você vende para um milhão. Se for para atender a uma classe A/B + você vai vender para cinco milhões, se for atender à classe B para uns 15 milhões por exemplo. Depois vem o B restrito, sei lá, com 15 milhões e depois você tem as classes C e D com 100 milhões. A gente sempre teve como visão vender para o maior número de pessoas, vender para o público maior. E por que isso? Se você perde 100 clientes ainda tem milhões de outros na sua frente. E se você conhece e identifica esse público é mais fácil trabalhar com os públicos C e D do que exclusivamente com o público A.

O público A tem dinheiro, e se quer comprar perfume vai para Miami, para Paris. É uma consumidora que pode ir no Salão e gastar R$ 300, R$ 400, R$ 500 numa única tarde para arrumar o cabelo. Agora, imagina uma pessoa da classe C, que nunca teve muita renda, a alegria dela em poder comprar o melhor produto, um shampoo de qualidade, uma coloração de qualidade por um preço que ela consegue pagar. Vai pagar R$ 25 numa coloração? Não. Ela leva a Cor & Ton, por R$ 9. Então a gente sempre teve a visão de vender para esse público maior, a base da pirâmide.

Particularidades da base da pirâmide
Uma empresa que trabalha com consumo de massa deveria ter sempre uma linha para atender às classes A/B e uma linha mais direcionada para as classes C e D. Para mim isso é mandatório. Um produto para a classe A tem de ser um produto superior, com embalagem de ponta e logicamente um valor agregado que vem junto. Naturalmente, quase todo mundo quer vender produtos de valor agregado alto. Mas isso requer uma ginástica muito grande. Um esforço muito grande de ponto de venda e publicidade para mostrar que o seu produto é realmente diferenciado. Não é um negócio fácil e o Brasil ainda tem o poderio de compras, em grande parte, nas classes C e D. Ficar longe do mercado de massa, do povo, acho que é um risco muito grande. Nós procuramos estar sempre com esse público, que são as classes menos favorecidas.

A gente sempre soube aproveitar essas oportunidades que se apresentaram no mercado por esse público. O Brasil tem um mercado espetacular e um grande público que nunca teve dinheiro na mão para gastar, para investir em si mesmo, na sua beleza, mas eles sempre gostaram de novidades. Então era preciso trazer novidades e dar a elas um pouco mais de atenção.

Percepção e capacidade de se comunicar
Acho que (entender e se comunicar com o público mais popular) é um dom divino, que veio lá de cima. Uma sensibilidade para vender, para cativar pessoas. São características que eu carrego em abundância. A Niely tem hoje 2.000 funcionários, você ter 2.000 pessoas na sua folha de pagamento não é fácil. E tem muitos funcionários com 20, 25 anos de casa. Isso deve ter lá até hoje. Você saber recrutar pessoas boas, mantê-las à sua volta e permitir que elas progridam, para isso você tem de ter um dom. De identificar pessoas boas, um dom de capacitar e fazer com que elas multipliquem o que elas aprenderem. Deus me deu essas qualidades e carrego isso comigo para todo o lado, até hoje, na maior simplicidade.

Com muito trabalho, Cor & Ton virou a marca número 1 em coloração e Niely Gold também é um campeão de vendas. Chega uma hora que, para se comunicar com essa grande massa de gente, você precisa de porta-vozes e aí nos fomos atrás de uma artista. A Cláudia Raia foi a nossa primeira artista. Uma pessoa excelente, muito competente, amiga... Foi a primeira garota propaganda e ficou com a gente seis anos, depois vieram Carolina Ferraz, Nanda Costa, Cláudia Leite... Ter a parceria com esses grandes nomes foi muito bom e importante para se comunicar com o público de massa, que de certa forma precisa de um artista avalizando para se identificar com o produto, ou pelo menos tornar esse processo mais fácil.

Um olhar sobre as empresas locais
Aqui, no Brasil, temos muitas empresas pequenas e médias de grande potencial, com qualidade e capacidade de inovação. Mas hoje, conhecendo o lado das grandes empresas como a L’Oréal com quem eu tenho um canal aberto e um respeito muito grande, posso dizer que a estrutura das empresas no Brasil foi durante muito tempo – na verdade ainda é – deficitária em termos de suporte aos negócios e estrutura interna (administração, ferramentas de gestão, jurídico, supply chain...). Tem uma questão de tempo de existência, claro. Empresas como P&G, L’Oréal, Unilever são centenárias e sabem tudo o que é preciso fazer nos bastidores da empresa, elas criaram as regras de gestão de negócios modernas e os estudantes já são treinados para atender ao padrão estabelecido por elas. Essas empresas, por si só, já estão muito mais preparadas para encarar o mercado do que as empresas brasileiras.

Na minha opinião, as empresas brasileiras, com raras exceções, não estão estruturadas e capacitadas para se transformarem em grandes empresas. Muitas vão ficar batendo cabeça. A Niely, comigo, sempre foi muito boa na parte fabril, de Marketing e no Comercial, mas nós deixamos muito a desejar na questão da estrutura interna. Hoje a empresa aprende muito sobre tudo isso com a L’Oréal. As empresas no Brasil, em especial as pequenas e médias, estão muito longe de atingir a eficiência que elas precisariam ter. E isso é um problema das empresas brasileiras no geral. A maioria das multinacionais você controla como se fosse um grande avião, com todas as informações ali no Painel. E as empresas brasileiras não estão capacitadas para isso. Acredito que entre as pequenas e médias, poucas estarão estruturadas para ser grande. É uma questão também de escola, da universidade, da qualidade da educação no País.

A noiva mais cobiçada do mercado
Quando chegamos à liderança do mercado de coloração dez anos atrás, qualquer empresa do mundo que queria saber do mercado de coloração no Brasil podia saber quem era a Niley. Quem mais vende coloração no Brasil é a Niely. Mas quem é a Niely?  Passamos a ser a noiva com quem todo mundo queria se casar. E fomos muito procurados por empresas da Ásia, da Europa, dos EUA. Em maio do ano passado, o Jean Paul Agon (presidente mundial da L’Oréal), muito perspicaz, marcou um almoço aqui no Rio de Janeiro e depois foi na minha casa em Angra dos Reis. Ele me disse que sabia que o processo de venda da empresa estava adiantado com outras empresas mas que ele gostaria de pular esse processo. Eu disse: “olha, estamos em ajustes finais mas se vocês correrem e apresentarem uma proposta que possa ser igual ou maior, acho que a gente pode avaliar”. Em três meses, eles colocaram uma proposta na mesa e nós assinamos com eles. Eu podia escolher, tinha três cartas na mesa e estamos felizes pela L’Oréal, com a qual construí uma relação de respeito, carinho e admiração por todo mundo que está lá. A Danielle (de Jesus, filha do empresário e ex-diretora de Marketing da Niely), está trabalhando na L’Oréal. Tanto o Jean Paul como o Didier (Tisserand, presidente da L’Oréal Brasil) a convidaram para ficar na empresa, em Paris ou Nova York, onde ela está hoje, trabalhando na área de Marketing de Haircare. É um mercado bastante competitivo, com muita análise e dados, e ela está aprendendo bastante também.

Abaixo do zero
As pessoas me perguntam se comecei do zero. Digo que comecei abaixo do zero. Tudo o que a Niely virou foi construído com muita dificuldade, sangue, garra e dez, 12, 14 horas de trabalho por dia. Você se prejudica até na sua vida pessoal, com seus filhos e família, então foi tudo com muita dificuldade. Mas não me arrependo. Acho que tudo tem a sua hora, tem o seu tempo. Fizemos um trabalho bem feito que todos reconhecem. Ser empresário no Brasil não é fácil. Passamos muitos momentos difíceis, sem dinheiro, vendendo o almoço para comprar a janta, foi muito difícil.

O que a Niely fez em 30 anos era para ter sido feito em 60. Então foi com muita garra, dedicação. É lógico que em alguns momentos você vive horas de tristeza com o negócio, mas desistir jamais. Em nenhum momento pensei em desistir. Sabia que a gente chegaria ao patamar que chegamos.

Olhando para o futuro
Acredito que fiz meu nome no mercado de perfumaria e cosméticos. Sou querido, respeitado e admirado no Brasil todo. Em qualquer lugar do País que ligo sou recebido de braços abertos. As pessoas têm me cobrado muito, perguntando sobre minha nova empresa (risos). Não posso pensar nisso agora. Tenho dois anos e meio de cláusula de não competição com a L’Oréal e eles têm sido muito decentes comigo, escutando minhas ponderações e opiniões sobre o negócio e me recebido muito bem. Então pode vir acontecer, mas tenho de esperar. Não sei como vai estar o mercado daqui três anos, mas o grande patrimônio que tenho é esse relacionamento comercial no Brasil todo, no qual sou querido e festejado. Tanto que tenho vários lojistas e distribuidores no mercado, meus amigos, que já me disseram que querem que fature a primeira Nota Fiscal da (quem sabe) futura nova empresa para eles. Esse carinho, essa confiança não tem preço.
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