Uma onda perigosa

Uma onda perigosa
A profusão de claims "livre de" nos lançamentos da indústria cosmética deve ser olhado com atenção e cuidado pelo mercado, tanto do ponto de vista da segurança cosmética quanto em relação ao consumidor


Os reguladores globais da indústria cosmética - União Europeia à frente - vem apertando mais e mais a lista de ingredientes passíveis de uso em formulações de produtos de higiene pessoal e beleza. É um movimento que está baseado em novos estudos e na análise de reports feitos às autoridades locais sobre casos de intoxicação ou alergias geradas pelo uso de determinados ingredientes presentes em fórmulas cosméticas. Apesar de acarretar sempre um grande impacto para os fabricantes, não se tratam de processos intempestivos, fruto das vontades de uns ou de outros. Embora muitas medidas sejam questionadas pela indústria nos bastidores, elas têm como premissa única aperfeiçoar a segurança dos consumidores no uso de produtos cosméticos e, mais recentemente, levar em conta o impacto ambiental que esses ingredientes geram.

Muitas dessas matérias-primas têm estado sobre reavaliação, submetidas a novos processos de investigação e análise disponíveis. Em alguns casos, ingredientes tradicionalmente usados pelo mercado de beleza, têm sido apontados como produtos com algum grau de potencial carcinogênico quando utilizados em grandes quantidades ou com um nível de exposição muito elevado. Uma vez que o risco é apontado, tem se início um processo de revisão do uso dessa matéria-prima, que passa a ser proibida para todos, ou para alguns usos, como a aplicação em fórmulas de produtos não enxaguáveis, como cremes para a pele. Isso faz com que muitas empresas já comecem a se movimentar para retirar esse ingrediente das suas fórmulas. Mas, de fato, até que essas restrições sejam incorporadas à legislação e tenham que ser banidos de determinadas fórmulas existe um longo caminho a percorrer. Isso é uma coisa.

Outra, bem diferente, mas tão impactante quanto, é o movimento que vem de influenciadores digitais que advogam pelo uso de produtos livre de algum, ou de alguns ingredientes gerando ondas que se refletem diretamente nos consumidores "guiados" pelas redes sociais. É como se as pessoas, de uma hora para a outra, acreditassem que o uso de produtos cosméticos devidamente testados e aprovados pelos órgãos reguladores pertinentes é maléfico para a sua saúde e à sua beleza. Sem ter todas as informações necessárias, muita gente entra nessas ondas sem qualquer questionamento sobre se as informações que circulam realmente procedem. Mesmo que a informação esteja muito mais acessível e que, cada vez mais, os consumidores estejam interessados em entender o que eles aplicam na sua pele ou nos seus cabelos, na prática, o real conhecimento sobre os ingredientes (e a ação deles) numa formulação é bastante restrito para as massas e mesmo entre os digital influencers.

Para Maria Inês Harris (na foto abaixo), especialista em cosmetovigilância e diretora-executiva do Instituto Harris, que atua na área de avaliação de segurança de cosméticos, existem situações e situações, mas, muitas vezes, essas ondas contra determinados ingredientes são, na verdade, um desserviço. "Tentamos educar o consumidor para que ele possa escolher produtos que passaram por um processo de avaliação sério. Se a empresa trabalha corretamente com um ingrediente, é possível estabelecer condições de uso adequadas, que não oferecem riscos nem ao consumidor e nem ao meio ambiente", diz a especialista. O caso do parabeno é dos mais emblemáticos. Considerado um dos novos vilões do mercado, o parabeno é um conservante ainda largamente utilizado pela indústria, e que, conforme mostram os estudos, apresenta potencial para gerar doenças como câncer de mama, melanoma e afetar a fertilidade quando aplicados em doses muito altas (que é o que acontece nesses testes), algo que não ocorre com o seu uso em formulações cosméticas, que aplica doses muito mais baixas. Entretanto, nessa nova conjuntura, a especialista acredita que as pessoas não se posicionam adequadamente. "Falam contra o parabeno, mas compram um produto feito não se sabe onde, sem nenhum controle ou garantia de segurança", lamenta. ?Não acho que seja serviço para ninguém você ficar 'livre disso, livre daquilo'", reforça Maria Ines, para quem cria-se uma ilusão que leva as pessoas a pensarem que estão comprando um produto mais seguro só porque ele é 'free from' disso ou daquilo, quando na verdade, esse produto pode não ter sequer passado por uma avaliação de segurança.

O papel da indústria

Talvez o aspecto mais importante a ser observado, é que a influência exercida por diferentes agentes (influenciadores, celebridades e sub-celebridades) nas redes sociais é um dado da realidade. Goste-se ou não, fato é que os consumidores são influenciáveis e o efeito manada gerado por comentários de alguns influenciadores digitais e mesmo por outros consumidores não pode ser ignorado.

Conduzida pela plataforma de mídia Teads, em parceria com a Global Web Index, a pesquisa "Novas Faces: Estudo Sobre Beleza & Cuidados com a Pele" buscou compreender o comportamento de compra, preferências dos produtos e motivações do público feminino ao consumir produtos de beleza e cuidados com a pele. O levantamento ouviu aproximadamente cinco mil mulheres em oito países, entre eles o Brasil, e revela dados comportamentais relevantes, como o fato de que 83% das entrevistadas que se encaixam na Geração Z (16 a 20 anos) encontram novos itens principalmente por meio das análises de outras consumidoras no ambiente on-line.

Ao mesmo tempo, o levantamento constatou que, contrariando a tendência do aumento do número de profissionais que atuam com marketing de influência, somente 30% das brasileiras pesquisadas utilizam influenciadores digitais como fontes para a descoberta de novidades em beleza e produtos para a pele. Para elas, fatores como preço (77%), adequação ao tipo de pele (72%) e prova científica de resultados positivos (51%) são os principais motivadores para a compra.

Frente a dados que demonstram que os mecanismos de influência e decisão de compra de um produto de beleza são difusos, mas que a opinião de um influenciador não é mais relevante do que a prova científica de eficácia do produto, é preciso fazer uma questão: qual deve ser o papel da indústria na abordagem de mitos que surgem nas redes sociais?


A resposta não é simples, nem objetiva. De um lado, a legislação permite o uso desses produtos, o que, de certa forma, garante a sua segurança, ainda que já existam no mercado alternativas mais seguras e modernas. "Trocar um conservante, por exemplo, implica em refazer toda a avaliação de segurança da fórmula, testar novamente a estabilidade. É como se fosse um desenvolvimento novo e nem todas as empresas têm uma habilidade muito grande para realizar um processo desses rapidamente", acredita Maria Inês. Isso é um ponto muito mais relevante do que o eventual custo superior de ingredientes mais modernos, que vêm em substituição aos que precisam ser substituídos por motivos regulatórios ou para responder a pressão das redes sociais.

Por outro lado, não é fácil desmentir e fazer com que as pessoas acreditem em algo que é diametralmente oposto a verdade que o consumidor já incorporou. E não importa se essa verdade vale menos do que uma nota de R$ 3. Mas a especialista reconhece que há um amadurecimento do mercado. "Vemos que algumas empresas começam a tentar comunicar, a explicar alguma coisa (sobre ingredientes e segurança para os consumidores)", pontua.

A indústria tem a capacidade e os recursos para educar o consumidor e tentar desfazer certos mitos. Em determinadas situações, como aquelas que realmente não tem pé nem cabeça - as que diziam respeito ao silicone, classificando o ativo de origem mineral como um petrolato, o que o fez um inimigo dos regimes de tratamento de cabelos das cacheadas - poderiam ser alvo de uma ação das empresas no sentido de educar as influenciadoras. As próprias empresas de matérias-primas com ingredientes atacadas de forma totalmente equivocada poderiam se movimentar e buscar formas para fazer com que a informação, de alguma forma, chegasse até influenciadores e consumidores. Mas, esse é um dos grandes problemas que as indústrias de alguma forma atingida por falsos mitos apresentam em relação a esse item. Elas reclamam da falta de conhecimento, mas pouco tem feito para mudar isso.

Mas, também é verdade que a aparição desses mitos gera oportunidades de mercado que podem catapultar novas empresas a posições mais altas no mercado. Existem indústrias que enxergam nesses mitos a possibilidade de ganhar espaço com produtos que ofereçam a solução, do ponto de vista de marca e formulação, aos produtos tradicionais afetados pelo mito. Quando feito também seguindo todas as regras de segurança cosmética e a legislação vigente, é um movimento legítimo, ainda que em alguns casos, para se promover, essas indústrias acabem por reforçar alguns mitos. Mas, as pequenas empresas que em geral acabam respondendo a essas "novas demandas" não tem muito a perder, elas são as marcas desafiantes. Agora, no caso das grandes empresas, locais e multinacionais, entrar na onda ao invés de explicar e educar o consumidor, não seria um tiro no pé? Estaria a indústria errando na abordagem em relação à segurança cosmética?

Maria Inês vê uma curva de aprendizado nesse processo. "Tivemos um momento no qual aparecia uma onda dessas e todo mundo se calava e dizia: 'vamos atender a demanda do consumidor'", diz ela. A especialista acredita que o próprio caso envolvendo os parabenos e os seus reflexos para a indústria e a população serviu como um ponto de inflexão. "(Os parabenos) eram ingredientes usados na indústria cosmética numa quantidade de exposição ao consumidor muito abaixo de qualquer dose que poderá provocar qualquer tipo de efeito colateral. Nesse processo, passou-se a utilizar ingredientes muito mais perigosos, levando a uma epidemia de alergia por conta desses outros conservantes, como o CMIT/MIT", afirma Maria Inês Harris, que acredita que os envolvidos esperaram muito tempo para fazer alguma ação, o que levou a situação a tomar um vulto muito grande. "Por outro lado, é importante um comprometimento e a própria empresa às vezes não quer se manifestar. É uma situação às vezes crítica porque você está produzindo um material e começa uma onda contra aquele material. Às vezes, me pergunto: 'de onde veio isso?', porque são acusações muito fortes. Você está quieto ali e chega uma onda dessas que não têm nem pé nem cabeça. Usam da vulnerabilidade, da imaginação da população para se promover, para produzir mais rótulos, cobrando mais caro porque trazem uma nova tecnologia, uma patente diferente, aí eles vão valorizar", explica. "Não estou criticando o desconhecimento da população em geral, mas é uma histeria coletiva e tem gente que se beneficia disso", conclui Maria Inês.
 


O papel dos fornecedores
As indústrias de matéria-prima obviamente estão na raiz da questão. Um dos grandes campos de disputa nessa questão de cosmetovigilância, trata de uma série de preservantes tradicionais da indústria tendo seu uso restrito ou mesmo proibido na Europa e muitas coisas aqui no Brasil também. Isso gera um conflito de interesses entre quem produz preservantes tradicionais frente a outras possibilidades mais modernas, mais seguras em vários aspectos porque já evoluíram. Realmente, o mercado de matérias-primas tem conflito de interesses violentos. Uma empresa com uma linha de produção inteira numa planta que produz uma matéria-prima x vai defender aquilo com unhas e dentes; mas, por outro lado, esse mesmo fabricante sofre uma pressão por inovação constante. "As próprias indústrias usam um pouco dessas ondas de crítica a um produto, para inovar e valorizar seus novos ingredientes, que já respondem a essa demanda mais moderna", acredita Maria Inês.
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